domingo, 22 de junho de 2014

Quem fundou Santarém, Bettendorf ou Atoassanã?

No dia em que se festeja a "fundação" da cidade,
que tal uma reflexão sobre os mitos?
Na história dos povos criam-se mitos, fatos relatados com pouca ou nenhuma comprovação, mal apurados e às vezes meramente inventados. Intencionais quando interessam aos grupos de poder manter determinadas aparências. Por isso criam-se heróis e fatos heroicos cuja veracidade deve permanecer no limbo das verdades consentidas porque cômodas ou vantajosas. É por isso que se diz que a cidade de Santarém, no Pará, foi fundada por João Felipe Bettendorf em 1661. Só que, quando esse jesuíta luxemburguês chegou por lá, já encontrou João Corrêa, português que, provavelmente já fazia parte de uma pequena colônia lusa espalhada nas redondezas de onde viria nascer Santarém.
Não seria ele o "fundador"?
Esta questão vai aqui como provocação aos historiadores de hoje.
Foto: Edson Queiroz
Este João Corrêa se relacionava com os mais antigos fundadores, os Tupaiús. O próprio Bettendorf, em sua crônica, informa isso, acrescentando que Corrêa era bem aceito pelos indígenas porque sabia curar certas doenças. Está na Crônica de Bettendorf: Era Correa “festejado” pelos índios, “tão conhecido e amado pela grande caridade com que os sangrava e curava em suas doenças e achaques, e que por esta razão também todos os chamavam seu atoassanã, que dizer compadre”.

Então, quando o missionário jesuíta chegou à confluência do Amazonas com o Tapajós, já havia um núcleo europeu convivendo com os indígenas. Logo, porque não seria este "atoassanã" o fundador? Ele falava muito bem a língua tupaiú e conhecia bem o povo com o qual se relacionava que chegou a traduzir o primeiro sermão de Bettendorf aos tupaiús, nos seguintes termos:

“Filhos, como eu sou ainda pouco praticado em os estylos destas terras, pela pouca assistencia que em ellas tenho feito até agora, por haver pouco que sou vindo do Reino, desejando eu saber o verdadeiro modo de as governar, ouvi dizer que haveis de ser governados com pancadas como se governam os brutos, por não seguirdes a razão que Deus deu aos homens para se dirigirem por ella; não me posso persuadir que isto seja assim e portanto quero fazer experiência antes de crêl-o. Olhae os Mandamentos da Lei de Deus, todos se fundam em a razão, e quem os seguir deve-se chamar homem racional, e pelo contrario quem não os quer seguir este se póde chamar de bruto, e se deve governar com pancadas como se governam os animaes irracionaes” (Relatado pelo próprio Betendorf, em sua Crônica).
 
É claro que o Padre Bettendorf não foi mandado por Antônio Vieira fundar uma vila ou uma cidade. Ele foi despachado para organizar a catequese e, dessa forma, angariar maior obediência dos indígenas ao processo colonizador que se aprofundava na direção do interior da região. Se assim foi, o Atoassanã poderia ter sido o efetivo "fundador" do processo colonizador entre aquele povo, este sim, o verdadeiro fundador da primitiva civilização que havia naquele lugar, já visitado por espanhóis e lusos, décadas antes de Bettendorf.
 
Seja lá quem foi o pioneiro europeu, já havia naquele lugar hoje chamado Santarém um vigoroso núcleo humano, com cultura própria, agricultura em estágio avançado para a época e um povo guerreiro, como atestou em 1637 o Padre Acuña, que contabilizou, nas areias do Rio Tapajós, 40 mil guerreiros com seus arcos e flechas envenenadas. Tão bravos eram que os europeus os dizimaram em curto prazo: 50 anos após a conquista de suas terras e a derrocada de sua cultura, o Tupaiús já quase não existiam, a não ser restos humanos desfigurados pela cachaça e a saudade de sua gente destruída. Pelo teor do sermão de Bettendorf, compreende-se bem esse processo destrutivo de um povo.
(Fonte: Blog do Jornalista - Manuel Dutra)

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