Ainda a pouco entreguei meu pedido de desfiliação ao Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores (PT). Oficialmente permaneci vinculado ao PT desde 1982. Portanto, dos meus 45 anos de vida, 30 foram como integrante desse partido. Contudo, desde 1997 já não tinha militância partidária, mas apenas participação esporádica em alguns eventos.
Entrei no PT em meio à campanha eleitoral. Naquele longínquo 1982 fiz campanha para militantes do meu bairro e pelo "voto camarão". Explico. É que houve uma manobra interna do grupo do candidato a governador e uma parte da militância resolveu não fazer campanha para o majoritário. Daí o termo "voto camarão": sem o cabeça da chapa.
Fui membro do grupo denominado "Articulação". Em 1985 um coletivo de petistas da Sacramenta, bairro em que vivo até hoje, se juntou a outros do município de Santarém, cujos expoentes naquela época eram Geraldo Pastana, um grande amigo e atualmente prefeito do município de Belterra, Avelino Ganzer, então vice-presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Valdir Ganzer, que em 1986, juntamente com Edmilson Rodrigues, compôs a bancada do PT na Assembleia Legislativa do Pará. Aliás, os dois conseguiram aprovar importantes artigos na Constituição Estadual de interesse dos(as) trabalhadores(as).
Esse grupo evidenciava diversas influências: marxista (de base maoista), cristã (Teologia da Libertação), do recente movimento sindical do ABC paulista e da pedagogia do oprimido formulada pelo educador Paulo Freire. Os outros grupos políticos que integravam o PT do Pará não sabiam ao certo como nos rotular, pois fomos chamados de o "braço do Sendero Luminoso" (grupo guerrilheiro do Peru de tradição maoista) até de agentes infiltrados. O fato é que apostávamos muito fortemente nos camponeses como atores sociais importantes para o processo de construção do socialismo no Brasil, e a maior parte da esquerda ortodoxa via o campesinato como "um movimento pequeno burguês". Somente com o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) anos mais tarde, além da crescente capacidade de mobilização do "mundo rural" é que essa esquerda começou a mudar de opinião. É engraçado porque até hoje nenhuma das chamadas "revoluções socialistas" foram efetivamente realizadas pelo operariado. Em todas elas o campesinato teve papel fundamental, mesmo na Russia, em 1917.Paulo Feire: um dos mestres da educação popular.
Também nos orientávamos pela ideia de que para organizar o povo era necessário estar no meio dele, viver com ele, sentir o que ele sentia. Daí a preocupação enorme que tínhamos com a educação popular. Defendíamos a tese de que ninguém conscientiza ninguém, as pessoas se conscientizam ao participarem do processo de construção de uma nova sociedade. Há algo mais "Paulo Freire" do que isso? Essa perspectiva guardava influência cuja origem era a Ação Popular (AP), antes desta se vincular ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) durante a ditadura militar. Criamos no nosso próprio "Método de Trabalho de Base". O Ranulfo Peloso, por exemplo, contribuiu na elaboração de muitos materiais pedagógicos do MST que, sem dúvida alguma, incorporaram algumas das contribuições desse método.
Por outro lado, tínhamos preocupação em não permitir o surgimento de desigualdades no grupo, ainda mais depois que alguns membros elegeram-se para cargos nos legislativos municipal e estadual, além de prefeituras. Nossa política interna de salários era rigorosa: os militantes com cargos no legislativo ou no executivo, por exemplo, recebiam apenas quatro salários mínimos e os demais militantes liberados recebiam dois. Os salários eram administrados pelo grupo. Tal prática funcionou por um bom período, mas depois se tornou fonte de conflitos e de intrigas. A tese era clara: não podíamos nos afastar do povo. Certo ou errado, maluca ou utópica, tal concepção tinha um sentido muito grande de generosidade, de entrega, de fazer as coisas por ideal e não por dinheiro.
Alguns membros do coletivo participaram de cursos em Cuba. A disciplina interna era muito valorizada. Lembro da vez em que o Pedro Peloso (o hoje deputado Airton Faleiro o acompanhou por solidariedade) teve que carregar um botijão de gás do Centro de Formação Chico Roque, na comunidade São Brás, até a sede de Santarém por que o mesmo esqueceu de comprar a botija e não havia luz no local. Creio que são 12 km de distância. Isto em 1985. Lembro disso com certa ironia, pois os grupos petistas que se intitulavam "revolucionários" nem de perto chegavam ao nosso grau de disciplina.
Durante todo esse período vivi momentos de profunda tristeza, como os assassinatos de lideranças valorosas e, acima de tudo, bons amigos, entre eles o Dema (na Transamazônica) e Jaime Teixeira. Também tive muitos momentos de felicidade, como a luta pelas Diretas Já, a conquista de diversos sindicatos de trabalhadores rurais, as grandes mobilizações populares em Belém, como as realizadas pela Comissão dos Bairros de Belém (CBB) e do Movimento pela Urbanização Popular (MUP), na Sacramenta, que na década de 1980 já lutava pela macrodrenagem da Bacia do Una.
Não posso esquecer das lutas que desenvolvíamos no meu querido bairro. Nos confrontamos com a família Ferro Costa e conquistamos o titulo de posse para mais de 5.000 famílias. Enfrentamos o Ministério da Aeronáutica e conseguimos que a população permanecesse na área que hoje é conhecida como Malvinas (no caminho do aeroporto Julio Cesar), bem como em toda extensão que vai desde o antigo galpão da Transporte Aéreo da Bacia Amazônica (TABA), na Tv. Dr. Freitas com a Av. Pedro Miranda, até a Pedro Alvares Cabral. Nas Malvinas fazíamos mutirão todos os finais de semana, roçando a área para que fossem construídas casas. A Polícia da Aeronáutica, fortemente armada, derrubava as casas durantes o dia e a população reerguia tudo durante a noite. Na área que hoje é o Canal do São Joaquim (da Av. Pedro Alvares Cabral até a Artur Bernardes) lutamos contra o Exército e a remoção forçada da população para o Conjunto Promorar, hoje chamado Providência (bem perto do aeroporto). Fomos vitoriosos em todas essas lutas.
Muito disso devemos aos padres João Beuckenboon e Tiago Van Winden. Não esqueço das palavras do Pe. João quando um grupo do Apostolado da Oração, de linha conservadora, questionou-o sobre o porquê dos(as) integrantes da Pastoral da Juventude estarem envolvidos(as) com a organização dos(as) moradores(as) do bairro e com a Teologia da Libertação. Disse ele: "Eu não preparo os jovens para a paróquia e sim para o mundo". Guardo um sentimento de gratidão e apreço por esses dois padres. Muito do que tenho de bom dentro de mim devo a eles. O PT do Pará também deve.
Fazer campanha eleitoral para os candidatos petistas era um prazer naquela época. Passávamos horas preparando manualmente os materiais de campanha (quem não lembra do reco-reco, da máquina de estencil, do mimeógrafo a álcool?). Eu e outros amigos chegávamos a trabalhar dezoito horas por dia. Perguntem ao Carlinhos Matos, à Regina Ferreira, ao Alberdan Batista, ao Domício Nunes, ao Gilberto Saldanha, ao Getúlio Jales, ao Carlito Aragão e tantos(as) outros(as). Carregávamos escadas, tintas, latas, goma e pincéis pela madrugada. Enfrentamos os cabos eleitorais do antigo PFL no tapa. Em 1986, o grupo que fazia campanha não tinha nem o que comer. A esposa do Nazareno Noronha, comovida com a nossa situação, nos arranjou um saco (de 60 kg) com pescoço de galinha. Foi o que comemos durante muitos dias. Lembra Toninha Arcanjo? Também enfrentamos as forças da repressão em plena ditadura militar quando o então presidente Figueiredo veio a Belém. Muitos(as) companheiros(as) ficaram cercados(as) pelas tropas de choque na Igreja da Santíssima Trindade.
Com o finado amigo José Ricardo (o famoso Cabinho) passei um dos maiores "perrengues" da minha vida. Na esquina da Passagem "B" com a Tv. Enéas Pinheiro fomos atacados por um "anti-petista" que avançou sobre nós e outros amigos com uma faca na mão em plena madrugada. Ao fugirmos nos deparamos com um policial que atirou a queima-roupa na nossa direção. Acho que nunca corri tanto na minha vida. Tempos depois o policial veio a participar da luta que desenvolvemos pelo projeto de macrodrenagem.
Vivi também fatos pitorescos. Certo dia o amigo Carlinhos Boução, então membro do Partido Revolucionário Comunista (PRC), convidou-me para ir até á casa dele a fim de lermos juntos as resoluções do congresso do partido. Quando estava na parada de ônibus, um amigo meu de infância que trabalhava na Polícia Civil ofereceu-me carona. Qual não foi a surpresa do Boução quando o carro da polícia estacionou na porta da casa dele. Nem sei se ele lembra desse episódio.
Outro que me ocorre foi quando a prelazia de Cametá organizou um debate sobre a constituinte com candidatos a deputado federal, em 1986. Estavam lá o Geraldo Pastana, o Humberto Cunha, o Ademir Andrade e o Gerson Peres. Terminado o evento um grupo de partidários do Gerson Peres avançou sobre o Humberto Cunha ofendendo-lhe com palavrões. Lembro de uma figura que abriu uma revista na qual havia uma grande ilustração com a foice o martelo. O problema era que a rua onde se realizou o evento estava em obras e havia muitos paralelepípedos soltos. Alguns mais exaltados pegaram pedras e ameaçavam jogar no Humberto. Passei a bater fotos da situação e quando percebi um sujeito mal encarado veio na minha direção. Corri e mais adiante parei. Alguns companheiros petistas vinham logo atrás e me senti protegido. De repente a figura passa por mim de bicicleta e alguns metros depois a atira no chão. Quando me dei conta o cara estava com um revólver calibre 38. Apontou a arma pra mim e disse: "tu vai morrer seu filho da puta". Somente deu tempo de mirar a janela de uma casa e correr em sua direção. A proprietária assustada fechou a mesma imediatamente. Encurralado peguei alguns socos, tive o óculos quebrado, mas me recusava a entregar a câmera. Quando a figura apontou a arma novamente na minha cara a galera do PT chegou gritando, a senhora abriu a janela e eu dei um pulo olímpico para dentro da casa. Estava salvo.
Há uns seis anos atrás estava com o meu filho caçula na loja Magazan, da Doca de Souza Franco, onde encontrei o Gerson Peres e uma criança que parecia ser o neto dele. Disse ao meu filho lucas: "olha lá o cara cujo capanga quis atirar em mim". Ele imediatamente falou: "vai lá pai, dá-lhe uma surra nele". Naquele dia eu fui acometido de uma crise de riso.
Bem, eu poderia escrever uma quantidade enorme de laudas relatando muitas experiências que vivi no PT. Boas e más. Quem sabe um dia publico um livro de memórias. Reconheço que devo muito a esse partido. Meus sentimentos de liberdade, solidariedade, justiça e outros se consolidaram na militância política. Conheço dezenas de pessoas espalhadas por essa Amazônia que acreditam no PT, e que fazem dele um importante instrumento da luta política. São dedicadas, honestas e comprometidas com a transformação social. Todavia, não acredito mais que haja qualquer possibilidade de mudar os rumos do partido, pois as mesmas não têm poder para alterar a lógica dominante nele.
No passado, tínhamos os trotskistas, os "igrejeiros", os leninistas, os maoistas e outros agrupamentos políticos que se digladiavam para definir a linha partidária. Hoje, os grupos se organizam em torno dos mandatos. É o grupo do deputado "X", do vereador "Y". Cada um aposta em estratégias que lhes garantam a renovação dos próprios mandatos. Esse foi um dos motivos que me fizeram abandonar a Articulação em 1997 e deixar de ter uma vida partidária a partir de então.
Em contrapartida, temos petistas históricos que estão sendo criminalizados(as) por defenderem os direitos humanos. Vide o que acontece em Altamira com as pessoas que lutam contra Belo Monte. A legislação ambiental está sendo destruída para dar vazão aos interesses dos grandes grupos econômicos que querem se apoderar de vastas extensões de terras e dos recursos nelas contidas. A própria Constituição Federal vem sendo modificada para garantir a entrada de mineradoras e madeireiras em terras indígenas. Áreas de preservação são reduzidas (Floresta Nacional de Itaituba I e II) para viabilizar a construção de hidrelétricas nos rios Teles Pires e Tapajós de grande interesse das empresas do agronegócio (ADM, Maggi, Cargil etc.). o desenvolvimentismo é a nova "utopia" de grande parte da esquerda no comando do país. Infelizmente.
Saio, mas não renego as minhas origens. Tenho muitos(as) amigos(as) no PT e farei de tudo para não perder essas amizades. Não penso em associar-me a qualquer outra agremiação partidária, mas não deixarei de fazer política. Vou entregar-me mais do que nunca a fortalecer a resistência contra o atual modelo de desenvolvimento, e humildemente contribuir para manter acesa a utopia por uma nova sociedade, pelo fim do capitalismo.
(Blog Lasanha com farinha)
Acabo de ler teu relato de Adeus PT. Não deu pra conter as lágrimas... Tua história é parte da minha própria história (quando vivi em Belém por longos nove anos0. Também tenho sofrido por conta dos rumos que o PT tem tomado,mas,diferente do teu raciocínio, ainda consigo ver algumas coisas boas que o partido vem fazendo pelo Brasil afora. Isto não quer dizer que tu ou eu, estejamos certos ou errados. Apenas temos uma pequena diferença de ponto de vista neste momento histórico em que vivemos no Brasil.
ResponderExcluirTeu relato é muito fiel aos fatos. Parabéns companheiro. Sei que tu estais saindo do PT mas, jamais deixarás de ser Petista, ou seja, não deixarás de ser uma pessoa comprometida com a construção de uma sociedade mais próspera e solidária. Um grande abraço!